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  • Foto do escritorRepórter Guará

Muros e cidades

Heloisa Sousa


Uma vez morei numa casa muito grande, a maior de todas que já chamei de lar. No mesmo lote dessa casa, lá no fundo, existia um barracão que de tão feio com o tempo passei a achar bonito. Morei lá também. Entre essa casa e esse barracão existia um quintal onde minha vó fez brotar todo tipo de planta. Uma bananeira, uma variedade de pimenteiras, cebolinha, arnica, um mandiocal… tudo num terreno que não lhe pertencia de fato.


Minha mãe e eu, minhas tias e primos, moramos ali, nos mudamos e voltamos muitas vezes. Mas minha vó ficava sempre ali. Até que, nove anos depois, ela ganhou uma casa e se mudou, realizando o segundo dos seus três grandes sonhos. O primeiro, ter uma máquina de costura, já havia se realizando alguns anos antes; o segundo, da casa própria, se realizava agora; o terceiro, tomar um pote de sorvete sozinha, ainda não.


O sonho da casa própria minha mãe herdou da minha vó e eu herdei das duas. Muitas outras mães e avós também guardam esse sonho consigo. Pais que saem do norte e do nordeste e vêm pra cá o trazem também junto com sonhos irmãos desse, como o de um emprego digno e ver os filhos formados.


Assim, junto das minhas malas eu carrego, toda vez que tenho que me mudar, a vontade de firmar raízes numa casa que pode ser chamada de minha. Por isso essa crônica é sobre as janelas que nunca se acendem nos prédios no centro da cidade, sobre os lotes baldios que não guardam a história de família nenhuma, sobre os vazios urbanos entre os bairros da capital. Sobre os movimentos que reivindicam a dignidade de ter onde morar e sobre a Goiânia da especulação imobiliária que desabriga os pobres.


Os diversos muros, visíveis ou não, que tornam nossa capital uma das cidades mais desiguais da América Latina, separam bairros da elite dos das classes mais baixas. Nos empurram pra lugar nenhum, já que até das periferias os condomínios de luxo se apropriaram. E assim, vamos ficando sem lugar e invisíveis entre várias cidadezinhas, de Eldorados a Aldeias do Vale, Buenos a Maristas. E sempre que preciso atravessar a cidade e enxergo essas desigualdades tão bem marcadas pelo caminho, penso “quando Goiânia for só muros, que cidade nos restará?”.



*crônica de novembro de 2020


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