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  • Foto do escritorRepórter Guará

Entre pincéis e fios de prata

Atualizado: 4 de jul. de 2023


Heloisa Sousa



Pela fresta do portão é possível ver o verde intenso que, mais tarde, identifiquei ser das folhas de taioba que se espreguiçam na entrada da casa, tomando o caminho que leva da rua à porta da sala, resguardada por um limoeiro. As taiobas e o limoeiro ocupavam menos espaço quando Maria Luísa chegou com a família. Aliás, foi mesmo o jardim que a conquistou quando ela procurava um lugar para morar, há pouco mais de dois anos, depois de se cansar do barulho dos antigos vizinhos, no bairro próximo.

“Você veio com meu brinco!" notou, logo que entrei. O brinco de ferro batido, moldado no formato de floco de neve, trabalho dela e de José — as criações são feitas a quatro mãos —, é de uma coleção passada que fez muito sucesso entre as estudantes de biologia. “Elas ficavam doidas naqueles com formato de átomo. Mas um material de qualidade assim é difícil de encontrar, por isso nunca mais fizemos. Mas sempre digo pra José que, assim que eu encontrar aquele rapaz, vou encomendar o material para fazer mais brincos desse modelo”, conta, gesticulando como se José estivesse ali na nossa frente, mas o som da flauta denunciava sua presença em um dos quartos da casa.


Em meio às pinturas penduradas nas paredes, miçangas, fios de alpaca e goles de limonada, Maria Luísa conta as dinâmicas de trabalho entre ela e José. Cada peça é como uma digital, elas são únicas e é possível perceber a identidade de cada artista: as pulseiras de macramê feitas por ela possuem pontos mais abertos, as feitas por ele são mais largas. “Eu faço as mandalas e ele monta e faz o acabamento. Eu sei fazer? Claro! Eu sei! Só que ele faz melhor, então eu prefiro que ele faça”.


Me lembro da primeira vez que conversamos: diante de seu portunhol, eu tentava adivinhar qual era sua terra natal. Depois de algumas tentativas fracassadas, Maria diz quase que soletrando: Re-pú-bli-ca Bo-li-va-ri-a-na de Ve-ne-zu-e-la! Ela vive no Brasil há mais de 15 anos, mas nasceu no município de Maracaibo, capital de Zulia e berço do Lago Maracaibo, o maior da América Latina, com 13 mil km quadrados.

Te doy una canción


Era início dos anos 90, numa tarde de clima quente, típica de Maracaibo, que Maria Luísa e José se conheceram. Na busca por uma fita de Silvio Rodriguez, ela e a melhor amiga, Alexandra, caminhavam apressadas pela praça central da cidade quando notaram um grupo de músicos de rua que afinava os instrumentos e se preparava para passar o chapéu aos ouvintes que se aproximavam.


Na banda, alguns peruanos, um equatoriano, um venezuelano e um brasileiro. O brasileiro chamou a atenção dela. Ela chamou a atenção dele. Foi amor à primeira vista. Alexandra queria encontrar a fita na loja de discos, mas Maria estava mais interessada na música ao vivo. “Você está é de olho no loirinho…”, percebeu Alexandra. “Vá lá, o Silvio é foda, compre qualquer fita” “Não, eu quero que você escolha a melhor”. Depois da loja de discos, iam à Graffite, famosa loja de departamentos. Mas, dessa vez, a insistência de Alexandra não convenceu a amiga, os músicos já tocavam e Maria se tornava parte da plateia na praça. El derrumbe de un sueño. Algo hallado pasando. Resultabas sé tú. Una esponja sin dueño. Un silbido buscando. Resultaba ser yo.


Fim do espetáculo. Trocados no chapéu, os ouvintes se dispersam ao redor da banda. “Eu não comprei nenhuma fita porque custava trinta bolívares e eu só tinha vinte. Mas os vinte, eu deixei no chapéu”. Maria Luísa some em meio à multidão, que se espalha pela praça, em busca da Alexandra. De longe, ela sente sobre o ombro direito o olhar bobo do brasileiro procurando por ela. Tus ojos hacen magia, son magos, los abriste. Y ahora se reflejan las montañas en los lagos. Os olhos castanhos dela encontraram os olhos verdes dele.


Do Brasil, ela conhecia as telenovelas, as canções de Roberto Carlos — sucesso nas igrejas católicas venezuelanas — e a paixão pelas letras de Chico Buarque. Agora, conhecia também José. O músico se ofereceu para pagar uma uvita e passaram a se encontrar a partir dali, trocavam fitas gravadas. Todas as fitas que Maria Luísa tinha, gravadas por amigos com músicas brasileiras, se tornaram um presente dela para ele e, depois, se tornaram dos dois.


No início, os onze anos de diferença entre eles e as nacionalidades distintas foram incômodas para a mãe de Maria, que temia que ele levasse a filha embora. Mas José ficou. Se casaram um ano depois, sob benção dos pais de Maria Luísa. Pouca grana, uma cerimônia no cartório, sem festa e sem fotos, as lembranças daquele dia estão guardadas na memória.


— Começamos a trabalhar juntos e foi muito engraçado. Ele me deu um anel, que está guardado, pois é meu anel de casada. Depois ele me deu uns brincos e as meninas da escola de artes ficaram loucas. Aí eu falei pra ele: “se eu levo isso na escola de artes, as meninas compram tudo!”. Ele disse “Ah é? Então leva”. E foi assim.


Tinha acabado de voltar de Caracas quando conheceu José, havia ido à capital venezuelana para fazer uma prova. Passou em segundo lugar para o curso de Letras na Universidade Católica. Algum tempo depois ela voltava a Caracas, dessa vez para comprar fios de prata, material usado nas peças da dupla de artesãos.


— Você fez o curso de Letras? — pergunto

— Não.

— E por quê?

— Por quê? Porque me casei com um velho. — A risada alta inunda a sala.



En busca de un sueño


Folheamos o álbum de família empoeirado. Algumas fotos apresentam uma senhora com cabelos curtos e volumosos, bochechas salientes e batom vermelho. Em outra foto, o contraste: um senhor magro e com cabelo ralo. São os pais de Maria Luísa. Filha de professores, cresceu com o talento artístico da mãe que desenhava até a assinatura. O irmão também puxou a veia artística e o tio havia frequentado a Escuela de Artes Plásticas Julio Arraga. A arte é negócio de família.


Com 15 anos, ouviu broncas da irmã Antônia, freira do colégio onde estudava, quando quis expor sua ilustração da Virgem Maria segurando o menino Jesus no painel de dia das mães da escola. A freira era rígida quanto à decoração. Quando irmã Antônia viu o desenho, se surpreendeu, e novas broncas surgiram, dessa vez por Maria Luísa não estar em uma escola de artes ainda.


Julio Arraga parecia o lugar perfeito para Maria, mas sua mãe não achava o mesmo do “lugar de gente doida”. Apesar de ser artista, não apoiava a decisão da filha de frequentar a escola. Logo que concluiu o Ensino Médio, foi até Julio Arraga para saber o valor da matrícula: dezessete bolívares. A mãe, no entanto, continuou irredutível. A jovem passou então a frequentar a faculdade vespertina de pedagogia. Até que certa manhã, antes de sair de casa, ouve da mãe:


— Escuta, se suas aulas da faculdade são à tarde, por que você sai de casa todos os dias tão cedo?


— Eu estou indo à Julio Arraga. E não vou deixar de ir.


O fato é que Maria Luísa realmente estava fazendo faculdade de pedagogia, mas uma semana depois da recusa da mãe sobre a matrícula na escola de artes, pediu dinheiro a ela para comprar uma calça jeans e ganhou vinte bolívares. Fez a matrícula na Julio Arraga, onde assistia às aulas pela manhã, mostrou um jeans novo de uma amiga para mãe e fim da história, que a professora só teria conhecimento algum tempo depois.


— A Julio Arraga me ensinou a ter uma visão estética do mundo. Até hoje a escola e os professores têm uma influência muito grande na minha vida e eu sei que não seria artesã se não tivesse passado por lá.


Maria Luísa coloca os óculos de grau pendurados no pescoço por uma corda de miçangas coloridas, que se entrelaçam no cabelo jogado sobre o ombro, para visualizar melhor os livros de poesia publicados com suas ilustrações. Nos desenhos dos livros, o traço das pinturas espalhadas pela casa. Antes de manipular alicates e aprender a trançar pulseirinhas de reggae, ela manuseava tintas e pincéis.

Algumas páginas do álbum de fotos depois, uma jovem com os cabelos presos em um rabo de cavalo, ao lado um homem de longos cabelos castanhos e três crianças loiras com feições muito familiares: os olhos de José e o sorriso de Maria Luísa. Quando se casou e teve filhos, a artesã deixou a escola de artes e a faculdade de pedagogia, pois deixaria também Maracaibo, mas não sem saudade.



Déjame regresar


“Nós atravessamos todo o Brasil, as partes que não conheço, minha filha está conhecendo agora com o circo”. Com destino ao Sul do Brasil, Maria Luísa, José e Isaías, o primeiro filho do casal, saíram da Venezuela de encontro à família dele. Foi a primeira vez que ela pisou em solo brasileiro, sendo essa a primeira viagem. Voltou depois ao Brasil, já com as duas filhas mais novas, Ana e Isaura, quando a mãe de José ficou doente.


— Em 94 nós fizemos assim — risca o contorno do mapa da América Latina invertida tatuada no meu braço, com o dedo indo de baixo para cima — até chegar em Santa Catarina. Como foi uma viagem muito longa pela costa, na segunda vez fizemos assim — corta a América ao meio na mesma direção — passando então por Cuiabá.


Conheceu boa parte do país, adorou as praias de Santa Catarina e a família de José, mas não estava habituada ao clima frio, que interferiu nas vendas e no conceito do artesanato. “As pessoas não usam o mesmo tipo de peça no frio e no calor. Gostei muito de Curitiba também, mas lá, além do clima, não vendíamos bem. Então eu falei para José: ‘quer saber? Devíamos ir para Cuiabá’. E fomos. Mas minha ideia na verdade era voltar para Venezuela. Eu sou muito sincera, eu queria ter voltado pro meu país. Mas o Brasil é um país muito grande, as coisas ficaram difíceis”.


Diferente da Venezuela, o Brasil não se mostrou receptivo à arte de Maria Luísa. Ela estava acostumada às filas de clientes nas praças onde vendia seu trabalho. “É como diz a música do Silvio ‘Un obrero me ve, me llama artista. Noblemente me suma su estatura”, cantarola. No Brasil, é preciso peregrinar em busca dos olhares que apreciam as pedras e as mandalas confeccionadas por ela e o companheiro.

Uma vez na capital mato-grossense, crescia a preocupação com os filhos. Dentre as filas de espera nas escolas e a burocracia por falta de comprovante de endereço por residirem sempre em hotéis, eles perderam um ano de estudo, mas ganharam, com seus nomes em letras douradas numa plaquinha de metal, o reconhecimento de visitantes assíduos da biblioteca estadual de Cuiabá. “Meus filhos eram brilhantes, passavam o dia na biblioteca aprendendo português. Eu não podia conceber que eles não estivessem na escola por causa de um papel”.


Foi aí que ouviu de uma amiga, Eliane, que em Goiânia as crianças conseguiriam estudar. Em 2007, a andança ganhou novo destino. Já na capital goiana, encontrou a pensão da tia Maria, que tinha apreço maior por hippies, e o problema do comprovante de endereço para fazer a matrícula dos filhos foi resolvido. “É de um papel que você precisa, minha filha? Então aqui está”, tia Maria entregou o comprovante de endereço da pensão. A artesã foi até o colégio matricular os filhos e não pôde deixar de se lembrar de Eliane.


“Sou muito orgulhosa, não só dos meus filhos, mas de todos os seus coleguinhas que estudaram em escola pública. Me dá gosto vê-los nos corredores da UFG, quando estou trabalhando. Goiânia pode não ser a melhor capital do mundo para vender artesanato, mas meus filhos sempre foram muito bem recebidos nas escolas”. Isaías cursou Artes Visuais, Isaura fez Teatro e Ana, Economia, “para cuidar das finanças dos artistas”, brinca Maria Luísa


Seu plano era seguir viagem para o Norte do país, para facilitar a volta à Venezuela, mas quando a adolescência chegou e as raízes dos filhos já estavam fixas em Goiânia, não conseguiam deixar o colégio. “Foi quando percebi que estava ferrada e ficamos aqui por isso. Amo meu país, mas gosto de estar perto dos meus filhos e os planos deles estão aqui. Se eles saem do país e chega o momento em que não tenho mais nenhum filho no Brasil, aí eu vou. Sou uma mãe venezuelana, e somos muito parecidas com as brasileiras: grudadas com os filhos”.


A chuva cai pesada sobre as imensas folhas de taioba no quintal. Amiga das taiobas, mas nem tanto dos artesãos que, como Maria Luísa e José, batem perna pelas ruas da cidade para vender suas peças. O trabalho é cansativo, mas graças a ele os artistas cruzam com uma diversidade de pessoas e por diferentes paisagens. Conhecem gente interessante, lugares bonitos e se inspiram para suas criações.


A arte levou Maria Luísa a muitos lugares onde conheceu uma infinidade de coisas de que gosta e que detesta. Se apaixonou por José, criou os filhos, notou que tem sotaque, viu nas ruas da Cidade de Goiás o centro histórico de Maracaibo. O artesanato levou Maria a perceber que ama o Brasil, mas não se cansa de pensar no regresso. “Soy venezolana”.

Acompanhe o trabalho de Maria Luísa e José Amaro no Instagram Artes em cura


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